Há maios ou menos 20 dias, a notícia que bombava na internet soava quase que inacreditável: “mulher beija no tribunal o homem que lhe deu cinco tiros”. Isso, talvez soe surreal para alguém que nunca participou de um Júri popular com as suas mazelas e vicissitudes do tempo, mas nas relações entre pessoas envolvidas em atos de violência, nenhum fato pode ser considerado como espantoso. O fato ocorreu num julgamento na cidade de Venâncio Aires, no interior do Rio Grande do Sul e diante do olhar incrédulo dos jurados, a vítima de violência doméstica alvejada com nada menos que 05 (cinco) tiros nas costas, pediu licença ao juiz, foi até o réu e deu-lhe um beijo apaixonado. Registrada pelas câmeras, a cena e a história surreal para alguns correram mundo.
Em entrevista a um determinado jornal, Micheli Schlosser, de 25 anos, explicou que seu namorado Lisandro Rafael Posselt, 28 anos, não tivera culpa dos tiros que disparou contra ela em agosto do ano passado. Os cincos projéteis continuam no corpo dela.
Assim ela se expressou: “brigamos por causa de conversas que eu peguei no celular dele. Eu provoquei muito ele naquele dia. Ameacei que iria denunciá-lo à polícia por estupro. Ele nunca me agrediu antes. Eu não fico com homem que agride”, disse ela. Aos jurados, ela explicou durante o julgamento que deseja que o namoro deles retome de onde parou – nos tiros, quer dizer -, enquanto ele, condenado por tentativa de feminicídio e porte ilegal de arma, cumpre pena de sete anos em regime semiaberto, com tornozeleira eletrônica. O plano dela é se casar com o rapaz. Na internet, jornalistas questionaram a atitude da moça e leitoras e leitores se dividiram. Uma parte, revoltada, disse que é por causa de gente como Micheli que as mulheres continuam a ser mortas. Outra parte saiu em defesa da vítima, eis que agora ela sofria mais uma violência da mídia. Por acaso ela não sabe que as vítimas de relações abusivas são mulheres frágeis, adoentadas, que se colocam emocionalmente ao lado dos seus algozes por serem incapazes de resistir a eles? Essa era a alegação. Bem, eu acho que as pessoas e suas relações afetivas são muito mais complicadas do que as nossas opiniões simplistas e quem atua na área criminal sabe ou pelo menos deveria saber que o ser humano é mais do que diz ser. Não tenho dúvida que essa moça está sendo insanamente leniente com o namorado que diante da tortura da chantagem e de uma relação pra lá de doente, resolveu a questão tentando matá-la. Um cristão talvez entendesse a necessidade de perdoar intimamente o agressor, mas… voltar a namorar com ele, e ajudar a salvá-lo no julgamento com um beijo de novela, para maioria das pessoas, ultrapassa os limites da autoestima e da autopreservação. Ao mesmo tempo, a moça não parece de forma alguma com medo ou aterrorizada por seu agressor. Em vez de se portar de forma submissa ou assustada, age como senhora da situação.
Já vi diversas vezes jovens assentirem a perda de controle dos seus namorados, noivos e maridos. É como se as explosões de violência ou erotismo fossem um tributo a elas. Há vaidade e prazer nisso, uma espécie de confirmação por vias tortas do próprio poder de sedução. De achar-se poderosa e irresistível a considerar-se responsável pela reação assassina do parceiro é só um passo, e a vítima parece ter dado esse passo sem a menor hesitação: eu sou culpada, não ele.
Outra maneira de olhar os fatos é considerar que o casal da cidade de Venâncio Aires vivia uma relação doente, baseada em conflito, gritaria e agressão permanentes. Às vezes os dois são agressivos, às vezes só um deles, mas ambos são sócios na empreitada desastrosa. Se apenas um fosse doente, o outro tentaria ir embora. Quando não vai, quando nem tentam, é porque tem parte na turbulência e nos sentimentos intensos que ela provoca.
Não sei dizer com certeza, mas acho que houve um encontro de personalidades doentes na formação desse casal ao ponto do autor ter chegado a disparar cinco vezes contra a vítima em praça pública, depois de um ano e meio de namoro, e que ela se apresente como verdadeira culpada por esse crime sugere de alguma forma um caso de loucura a dois. Não me surpreende que o júri deu uma sentença levíssima, com base no argumento de “forte emoção”.
Pra uns, esse argumento não convence e a condenação com pena máxima poderia ser o melhor caminho. Pra outros, a vida humana anda barata. Eu prefiro achar que o ser humano é complexo demais e que algumas vezes, mostra-se de forma evidente que ele é uma experiência de Deus que não deu certo.