A recepção ou não do artigo 385 do Código de Processo Penal frente a Constituição Federal de 1988 está em discussão no Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1122, interposta pela Associação Nacional da Advocacia Criminal. A presente pesquisa tem por objetivo fazer uma análise crítica do referido artigo que autoriza o juiz a proferir sentença condenatória mesmo com eventual pedido de absolvição formulado pelo membro do Ministério Público.
Introdução
O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro opera ainda sob as bases do Códice de Rocco, da Itália de 1930, com nítida inspiração fascista e estrutura inquisitória, incompatível com odevido processo legal. Apesar de suas inúmeras reformas pontuais, parciais e setoriais, (Choukr, 1996, p. 25), ainda remanescem vários dispositivos com características nquisitórias, dentre elas a figura do artigo 385, que permanece com a redação inalterada desde sua edição de 1941 e questionado agora pela Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim) no Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.122.
Essa aparente impropriedade sistêmica exige que se faça uma releitura de tal regra, à luz de um modelo acusatório de processo penal claramente delineado pela Constituição de 1988, com previsão normativa expressa na Lei 13.964/19, e com o objetivo de verificar se, como resultado de tal filtragem constitucional, o citado artigo é compatível com o novo modelo processual penal ou se, ao contrário, deve ser considerado não recepcionado pela nova ordem constitucional (Badaró, 2017).
O julgamento, à primeira vista, não parece tão simples sem umaevidente resistência para manter o status quo daqueles que acreditam que o juiz não pode estar vinculado ao pedido do Ministério Público, sob pena do órgão acusador decidir a ação penal e determinar o destino dos acusados.
De outro lado, um dos fundamentos da ADPF 1.122 é que a condenação do acusado com o pedido de absolvição pelo detentor da ação penal afetaria diretamente a estrutura acusatória do processo penal brasileiro já devidamente definida.
Verifica-se que o esforço tem sido na direção de afastar toda e qualquer norma que conflite com as lentes da Constituição Federal e da alteração trazida expressamente pela lei que definiu o sistema acusatório como vetor de interpretação sistêmica.
Dispensadas as críticas na elaboração do diploma legal pelo limitado espaço da pesquisa, fato é que foi definida uma estrutura que o processo penal brasileiro deve seguir, inclusive,
com decisão da Suprema Corte, tomada antes mesmo da promulgação da Lei 13.964/19.
A ação que ora se discute foi proposta pelos advogados LenioLuiz Streck, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, James Walker(Presidente da Anacrim), Marcio Berti e Victor Quintiere. O relator da ação é o Ministro Edson Fachin. Assim, o artigo busca analisar de forma crítica as posições distintas sobre a não recepção do artigo 385 do CPP com a Constituição Federal e a norma.
2. O Juiz como autoridade definidora da ação penal
A corrente que defende a recepção do artigo 385 do CPP pela Constituição Federal reconhece que a previsão expressa da estrutura acusatória trouxe desdobramentos, mas, em certa medida, a mudança não convence parcela considerável na doutrina para permitir que o poder de uma das partes (Ministério Público) se sobreponha à decisão final do Juiz.1 Isso porque sequer há um conceito pré-definido do que significa “sistema acusatório”, muito menos uma percepção clara do que seja a sua essência. O fundamento ora se baseia na separação das funções de acusar e julgar, ora no poder de gestão da prova sem a clareza do que efetivamente seja o princípio unificador e o seu elemento fundante.
Por essa linha de pensamento, o novo artigo 3º-A do CPP deve ser interpretado de modo a vedar a substituição da atuação de qualquer das partes pelo juiz, e a autoridade judicial não pode se submeter ao critério do representante do Ministério Público, pois assim estaria vinculada aos pedidos (requerimentos) por ele trazidos na ação penal.
Nesse sentido, a submissão do juiz à manifestação conclusiva ministerial, a pretexto de supostamente efetivar o “sistema acusatório”, implicaria em transformar por via oblíqua o órgão de acusação em julgador, gerando perplexidade no sistema.
Portanto, o sistema acusatório seria violado justamente quando o Juiz estivesse vinculado ao pedido do Ministério Público. Para essa corrente, é da essência do sistema acusatório que só o
Ministério Público acusa e somente o Juiz julga. O direito de punir só é dado ao Estado-Juiz e não ao Ministério Público, que tem apenas a pretensão acusatória. Um exemplo oferecido para justificar esse posicionamento é a possibilidade de sucessão entre membros do Ministério Público numa eventual ação penal, o primeiro atuando até o momento das alegações finais, requerendo a condenação, e o segundo, assumindo a causa depois da sentença condenatória, viesse a formular o pedido de absolvição, pedindo-a via recursal (Jardim, 2024). Seria o caso de o Tribunal estar vinculado a esse pedido?
Sob essa óptica, de nada adiantaria a referida sentença condenatória do juízo de origem, porquanto, em decorrência da alteração de entendimento da instituição do Ministério Público, a absolvição seria decidida por esta e não pelo Judiciário, uma vez que o recurso vincularia o Tribunal, o que, nessa hipótese, estar-se-ia transferindo a função jurisdicional do Poder Judiciário para o Parquet (Capela, 2007).
Por isso, a vinculação do magistrado ao pedido de absolvição por parte do Ministério Público seria uma verdadeira agressão ao mencionado sistema, pois reunidas estariam as funções de acusar e julgar numa mesma instituição, qual seja: Ministério Público (Freire Júnior, 2005).
A questão também atingiria o julgamento do Tribunal do Júri, especialmente na confecção dos quesitos pelo Juiz-Presidente.
Em regra, quando o Parquet requer a absolvição do acusado, os jurados não estão vinculados a esse requerimento. A soberania do Júri não obriga os jurados a acompanharem o pedido do Ministério Público. Mesmo que essa vinculação fosse possível à luz do sistema acusatório, seria preciso uma ponderação de princípios em cada caso concreto, pois ambos previstos constitucionalmente, e a soberania dos vereditos do júri (art. 5º, inciso XXXVIII da CF) disputaria em igualdade de condições,
tendo em vista que a ação penal pública é privativa dos membros do Ministério Público (detentor exclusivo da ação penal) nos termos do artigo 129, inciso I da Constituição Federal.
Por essas razões, o STF tem decidido reiteradas vezes que o artigo não viola o sistema acusatório e foi devidamente recepcionado pela Constituição como no julgado do Recurso Especial 2.022.413 do Estado do Pará, (Brasil, 2023a) tendo como relator o Ministro Sebastião Reis Júnior. Ainda, em recente decisão de 2 de fevereiro de 2024 da lavra do Ministro Cristiano Zanin (Brasil, 2023b), concluiu-se pela compatibilidade do artigo 385 do CPP com a Constituição Federal, sob o fundamento
exclusivamente legalista, exigindo apenas um ônus de argumentação elevado para que o Juiz decida contra o titular da ação penal.
Em conclusão, proposta a ação penal ao Estado-Juiz, os fatos narrados na denúncia, o Juiz teria o dever de analisar motivadamente o mérito da causa submetida a sua apreciação e não estaria vinculado a qualquer requerimento das partes, exceto ao seu convencimento devidamente motivado.
3. Acorrente da não recepção do artigo 385 do CPP frente à Constituição Federal e à lei
Em sentido oposto, a Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional busca, com a declaração de não recepção do artigo 385 do CPP, o integral respeito à estrutura acusatória, eliminando resquícios inquisitórios que ainda se mantêm desfigurando totalmente o sistema. (Brasil, 2023c) Se o próprio STF declarou a constitucionalidade do artigo 3-A do CPP e definiu expressamente o sistema acusatório, não seria coerente manter dispositivos que conflitam e sejam incompatíveis com o desejo de um processo penal democrático.
A mesma lei que expressamente definiu a estrutura acusatória, em menor grau, também excluiu a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz, o que, convenhamos, gera certa perplexidade no sistema, pois, se a lei expressamente determina que o Juiz não pode prender provisoriamente sem pedido expresso do detentor da ação penal, seria ao menos incoerente manter no sistema a possibilidade ao Juiz de proferir uma sentença definitiva sem qualquer pedido.2
O ato de condenar alguém sem pedido expresso da acusação torna a autoridade judiciária um agente estatal que age sem provocação, pois, quando as duas partes convergem para o mesmo sentido, não se teria o que julgar. O pedido de absolvição requerido por aquele que também tem a missão de ser o fiscal da lei tornaria a ação vazia.
É preciso reconhecer ainda que quem efetivamente pede a absolvição do acusado é um agente público, com função exclusiva de detentor da ação penal prevista no artigo 129, inciso I da Constituição Federal, responsável pela reunião de elementos informativos para levar a cabo o poder punitivo do Estado-Juiz. Se o material probatório reunido é reconhecidamente insuficiente, não resta alternativa senão a improcedência do pedido estatal.
Na leitura do dispositivo constitucional verifica-se que cabe ao Ministério Público “promover” a ação penal, o que, em outras palavras, significa que o Parquet exerce não apenas o direito de ação, e sim promova a ação penal em toda a sua plenitude.
Promover é mais do que dar o impulso inicial. Promover é continuar a mover e, inclusive, caso haja fundamento, remover.
Ao final, cabe somente a ele, através de tudo o que “promoveu”, especificar que a sua pretensão continua posta ou, por força do conjunto probatório, deva ser removida. Não é dado ao Estado- Juiz se substituir à função privativa da acusação sob pena de o Juiz comprometer a imparcialidade do processo com a sua atuação de ofício, pois nada mais há a ser julgado.
4.Considerações finais
Numa visão clássica, a separação de juiz e acusação é um dos mais importantes de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais (Ferrajoli, 1998). Partindo desse pressuposto, o respeito ao sistema acusatório avançou e defende que o critério da gestão da prova esteja sob a responsabilidade das partes. Isso não só elimina a possiblidade de o juiz sofrer os efeitos da busca paranoica de uma suposta verdade material, como impossibilita que ele saia em busca de material probatório suficiente para confirmar a “sua” versão. Nesse sentido, não se trata de escolher a separação das funções de acusar e julgar ou o poder de gestão da prova na ação penal — elas são características essenciais que devem estar presentes para o reconhecimento de que se opera numa lógica estrutural acusatória. Além disso, na relação processual, o juiz não é apenas um sujeito de direitos, mas também se subordina aos interesses dos cidadãos enquanto partes, ou seja, possui direitos e deveres, a par do poder que é inerente à sua função jurisdicional (Coutinho, 2015).
Resguardadas as duas posições doutrinárias e os respectivos confrontos dialéticos, é inegável que a Constituição Federal e a mudança da lei caminham no sentido de priorizarem a importância das partes no jogo processual democrático. Isso porque, em uma visão epistemológica moderna, as pessoaspodem e devem escolher, através de seus valores e ideologias, o que desejam para a construção de um processo penal democrático. Se a regra do artigo 385 do CPP autoriza o juiz a condenar o acusado mesmo com o pedido de absolvição do membro do Ministério Público, é despiciendo dizer que as mudanças trazidas pela Constituição não alteraram a lógica secular inquisitória do Estado punitivista, amparado como sempre, pela sua relação de poder, em total substituição à vontade das partes. Por outro lado, entender que o artigo 385 do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal nos parece que a escolha é se aproximar de um conceito processual um pouco mais horizontalizado, em que as partes possam definir seus destinos com um projeto mais democrático, em bases sociais bem mais realistas. Se política, econômica ou ideológica, o tempo dirá. Como acentua Jacinto Coutinho (2015), o novo, porém, é um dado histórico e inimigo mortal das velhas práticas, das verdades consolidadas, do poder constituído; mas não deixa espaço para ser sufocado: aceitá-lo ou não é questão de tempo e, quase sempre, de uma visão prospectiva.
Informações adicionais e declarações do autor (integridade científica)
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Fonte: https://www.doi.org/10.5281/zenodo.10790278