É sempre bom relembrar como deve ser o nosso sistema de justiça criminal nos dias atuais ou, ao menos, como ele deveria funcionar numa democracia. Levando-se em conta que o nosso sistema é acusatório e sempre trilhando o caminho de um processo penal democrático, não resta alternativa, senão buscarmos o total respeito aos direitos fundamentais com a separação absoluta de investigar, acusar e julgar. Cisão essa pretendida com a lei 13.964/19. Portanto, as agências públicas que atuam neste segmento, devem operar cada uma dentro da sua área de atuação, ou seja, cada uma no seu quadrado.
Na maioria das vezes, a origem de uma investigação é realizada pela Polícia Judiciária, através de suas equipes especializadas, bem como pelos órgãos do Ministério Público (GAECOS), todavia, é comum haver certa confusão em achar que nesses procedimentos criminais e até mesmo em sindicâncias, logo de início, se investigam fatos. Na verdade, na origem do campo investigativo, conforme nos ensina Flávio Antonio da Cruz: “o que se investiga são suspeitas. É a suspeita que orienta e direciona as investigações. Saber se houve realmente um fato é o seu objetivo fim e passa necessariamente por informes (relatos não confirmados) que nada mais são do que suspeitas públicas”.
Nesse interim, se houver a conclusão de que a suspeita é infundada, por sequer haver indícios idôneos e suficientes que a amparem, a medida imposta, é sem sombra de dúvidas a não deflagração do procedimento. De outra sorte, se houver “justa causa” para o processamento, seja administrativo ou judicial, deverá ser deflagrado o ato administrativo pela autoridade, para a busca dos fatos que mais se aproximam da realidade.
Isso não significa como muitos apregoam que a autoridade deve sair em busca de uma verdade real, como se ela, existisse para intencionalmente perseguir aqueles que se encontram na condição de investigados.
Filosoficamente, a verdade é algo inatingível e no processo não é muito diferente, pois a exata verificação e reprodução de um fato delituoso estão longe de ser alcançados por aqueles ingênuos que acham que podem trazer a baila exatamente o que ocorreu.
Da mesma forma, também não significa que não há verdades no contexto processual, fosse assim, estaríamos num jogo cênico e hipócrita dentro da casa da justiça. O que importa mesmo na área criminal é se buscar uma verdade possível, e possível, obviamente, não se confunde com verdade formal.
Neste sentido, devem-se respeitar as regras do jogo democrático e do devido processo legal, o que não pressupõe, por óbvio que autoridades possam fazer o que quiser invocando uma imaginada busca ou presunção dos fatos de acordo com seus valores pessoais. Impressiona muito nos depararmos com profissionais baseando suas conclusões de investigação sob o fundamento de uma verdade real em pleno século XXI.
Outro equívoco é achar que a autoridade que investiga, busca provas em relação à determinada pessoa. O que ela na verdade faz, tecnicamente falando, é reunir os elementos de prova que vão ser levados à apreciação judicial sob o crivo do contraditório. Até mesmo elementos de prova antecipados, tais como perícias, exames e declarações de testemunhas imprescindíveis, são apenas elementos de prova que terão como destino a plataforma do contraditório. Classificar como prova aquilo que não foi contraditado pela outra parte, seria o mesmo que admitir uma defesa formal para os acusados.
Verifica-se assim que há uma sequência de importância na seleção da prova no transcurso do processo. É necessário o contraditório justamente para que esses elementos, quando confrontados pela parte contrária e não contraditados, possam ganhar relevo na escala de reforço do julgador.
Não se trata de hierarquizar provas, haja vista cada uma ter o seu próprio valor dentro de um processo, mas sim da formação embrionária da prova. É como se ao reunirmos os seus elementos, visualizássemos elos de correntes que se entrelaçam, mas que no início do percurso ainda se encontram abertos. Após o contraditório, cada elo poderia, um a um, ir se fechando como ciclo da sua própria formação, confirmando a prova, ou a contrário sensu, mantendo-se em abertos os elos, seria um sinal de que o elemento de prova seria frágil a ponto de ser imprestável para a condenação de alguém.
Por isso, a importância do respeito a cadeia de custódia e seus standards probatórios pelas autoridades ser um fato indisponível, sobretudo, nos casos de reconhecimento pessoal, exames e perícias que podem conduzir uma pessoa inocente a prisão. E todos nós sabemos que levar alguém ao cárcere, num país como o nosso é mais do que uma sentença penal. Mas não é só. A qualidade das provas é decorrência lógica de como elas serão colhidas e produzidas, pois vão impactar sobremaneira no resultado que se pretenda atingir.
Neste campo não se pode trabalhar com categorias de presunção ou estatísticas, tentando justificar que erros dessa espécie podem ocorrer, mormente, porque o bem jurídico em risco é não só a liberdade de quem esta sendo acusado, mas a segurança jurídica de que o Estado está processando aquele que realmente é autor de um crime e isso, passa necessariamente, pela qualidade da prova produzida pelo ente estatal.
O desprezo as regras do jogo nos leva a uma incerteza imensa no campo da formação prova, quando ela na verdade, é um núcleo substancial de todo o desenvolvimento de um processo criminal. Jeremy Bentham afirmava que: “a arte do processo não é, na realidade, nada além da arte da administração da prova”.
Por fim, tanto a separação de funções no que tange aos elementos subjetivos do ato de investigar, acusar e julgar, bem como a análise responsável das provas trazidas pelas agências para o tabuleiro da justiça, deve ser prestigiado pelo Estado incessantemente. Utilizar de justificativas utilitárias para o afastamento dessas garantias com alto déficit cognitivo na sua reprodução tende a enfraquecer o devido processo legal e principalmente, o Estado democrático de direito que juramos respeitar.
Referências Bibliográficas
BENTHAM, Jeremy. A Treatise on Judicial Evidence. Extracted from the manuscripts of Jeremy Bentham. Esq. by M. Dumont. London: Messrs. Baldwin, Cradock, and Joy, Paternoster-Row, 1825, p. 2.
MATIDA, Janaina. “Standards de prova: a modéstia necessária a juízes e o abandono da prova por convicção”. In: Arquivos da resistência: ensaios e anais do VII Seminário Nacional do IBADPP, Florianópolis: Tirant lo blanch, 2019.