Nunca entendi direito desde os bancos acadêmicos, a dificuldade que o Estado tem em reconhecer parcela de culpa nos erros que seus agentes cometem. Seja lá em qual setor da esfera pública se esteja a falar, existe quase que um dogma de que Instituições públicas, apesar de seus erros, devem ser preservadas a qualquer preço.
Quando esses erros cometidos partem do sistema de justiça criminal a resistência é ainda maior, sobretudo, porque não se pode conceber que um Poder possa agir em prejuízo dos cidadãos. Há uma presunção quase que absoluta de que os agentes públicos podem justificar qualquer conduta em prol de um benefício maior da sociedade.
O poder do Estado deve ser pautado por limites éticos, mormente, porque temos uma Constituição Federal e uma estrutura processual que deve ser respeitada. Buscar uma moral abstrata no fantasioso combate a criminalidade deve exigir dos agentes públicos uma ética concreta. O silêncio do Estado é eloquente sobre fatos irrefutáveis que fizeram parte de um jogo macabro em âmbito processual. Isso diz muito sobre as nossas agências de criminalização e do nosso sistema de justiça.
Geraldo Prado nos adverte, com a metáfora de Barbosa Moreira do trem e do trilho que diz: “os diversos carros com sujeitos processuais e com ambição de poder, forçam a locomotiva a sair do trilho levando a que a própria locomotiva, em um determinado momento, e com os mesmos fundamentos, decida correr livre à margem da ferrovia. O resultado desastroso é previsível”.
E prossegue: “as razões da Constituição para estabelecer as margens do devido processo se perdem na memória cada vez mais turvada pela premência da conjuntura- o “combate” a corrupção, quer a de empresas e agentes públicos, quer a de investigadores policiais e do MP- e ao final todos se julgam com bons motivos para agir fora da lei. Não há lugar para esses bons motivos”.
A experiência histórica sobre o resultado político do abuso do poder – ou, como afirma Agostinho Ramalho, “quem nos livrará da bondade dos bons” – é a instituição do estado de exceção que como buraco negro devora toda a institucionalidade.
Reclamar da violação alheia ao devido processo legal é correto, justo e chama atenção para os abusos, mas a legitimidade política deste ato de reivindicação requisita também afirmar a ilegalidade dos abusos internos e assumir a eliminação de suas práticas e efeitos. Um trem descarrilado não retorna sozinho aos trilhos. Tampouco volta sem danos, alguns carros se perdem, é o preço da desastrada decisão de agir “fora da lei”. Mas é fundamental para democracia que recuperemos o devido processo legal.
Ao final da “corrida” à margem o que temos é a morte da democracia. Este “resultado” é inaceitável a priori. Podemos justificar racionalmente as condutas ilegais. O discurso acomoda os maiores absurdos. Mas se, sinceramente o que desejamos é a melhor sociedade possível, plural e respeitosa das diferenças, devemos denunciar e agir contra “todos” os abusos no sentido de não admitir sua reiteração. Não há espaço para a seletividade. Não se trata de “caça as bruxas”.
Cuida-se, isso sim, de reconhecer erros, reparar danos –materiais, morais e históricos – e com humildade compreender os fundamentos que levaram à repartição de poderes no pacto constituinte de 1987/1988. A humildade institucional é para os grandes e há em todas as instituições (Polícia, MP, Judiciário etc.) Quem pela vaidade e ambição se viu “reinventando a roda” e “atropelando” os direitos apenas deu testemunho pessoal da ignorância em muitos aspectos.
A estas pessoas, oportunistas, falta virtude cívica que inspirou Ulysses Guimarães e demais no mais importante projeto político de nossa história. Não se pode contar com elas. Mas as instituições são maiores e melhores que elas. Ainda as temos em ação em várias casas. Interditar-lhe os passos ilegais é premissa. Não aceitar, sob hipótese alguma, a responsabilização penal fora dos marcos do devido processo legal é imperativo e categórico.
E fazer isso controlando abuso dos extremistas, que estão no poder graças às distorções intencionais do devido processo, é o único caminho para o retorno à normalidade. Claro: e aprender em definitivo, esta geração que não há espertezas e “saltos” que se justifiquem a si mesmos. Não há nada mais a dizer.
Referências Bibliográficas
Prado, Geraldo – via Twitter em 22/02/