Não há santo dentro de relações de poder, mormente, quando o que se tem na maioria das vezes é apenas a arrogância travestida da proteção de direitos da sociedade e das pessoas. Entretanto, com uma visão mais objetiva, e sem o ego inflado que invade os atores dessa arena, há necessidade de se ter um olhar mais técnico sobre a nova Lei de Abuso de autoridade. Trata-se de uma lei tecnicamente superior à lei 4.898/65, sem qualquer vício de inconstitucionalidade como querem alguns. A lei anterior, editada na época da ditadura militar, carecia de reforma integral, adaptando-se aos tempos atuais. Nesse perfil, é extremamente relevante destacar que os tipos penais da lei 4.898/65 eram muito mais abertos e não taxativos do que o cenário ofertado pela lei 13.869/19. Para se certificar disso, ela previa no art. 3º, “a”, da lei anterior:
“Constitui abuso de autoridade qualquer atentado à liberdade locomoção”. Seria perfeitamente amoldável a esse tipo penal toda e qualquer prisão preventiva decretada “sem justa causa” ou até mesmo uma condução coercitiva “fora das hipóteses legais”.
Dependeria de interpretação? Sem dúvida. Porém, na atual lei tudo ficou muito mais claro e taxativo. Toda lei penal pode apresentar defeitos de redação no tocante aos tipos penais incriminadores. Entretanto, as falhas da lei anterior são muito mais gritantes do que as da atual lei. Esta deixou claro que um abuso de autoridade somente ocorre quando manifestamente excessiva for a atitude do agente público.
Manifesto é algo notório, patente, inegável. Nada disso envolvia a lei 4.898/65. Qual lei penal estabelece como norma geral, que além do dolo é preciso buscar o elemento subjetivo específico (dolo específico)? Esta é a primeira.
Além do dolo, consta a especial finalidade de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. São variadas alternativas finalísticas, embora todas sejam particularmente reprováveis, razão pela qual se o agente público prender uma pessoa apenas para prejudicá-la; somente para se beneficiar disso; exclusivamente por capricho (vontade arbitrária) ou unicamente para satisfação pessoal (regozijo), indiscutivelmente estão abusando do seu poder.
Ora, a imensa maioria dos agentes de segurança pública, membros do Ministério Público e autoridades judiciárias atuam com lisura, sem nem pensar em se exceder no campo da sua autoridade. É preciso lembrar que, na lei 4.898/65, coube à doutrina e à jurisprudência exigir, para configurar abuso de autoridade, a finalidade específica de se exceder para prejudicar outrem ou satisfazer a si mesmo.
A atual lei 13.869/19 é muito mais garantista e protetora. O agente público está amparado pelo escudo do elemento subjetivo específico, que é muito difícil de explorar e provar;
Qual outra lei fornece tamanha blindagem aos operadores do direito, evocando, com nitidez, a divergência de interpretação? Não há no Código Penal, nem em leis especiais. Esta nova lei, entretanto, afirma que a “divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Noutros termos, duas autoridades judiciárias podem pensar em situações diametralmente opostas, como prender ou soltar alguém, pois interpretam a lei de maneira divergente.
Não há abuso de autoridade por parte de quem prendeu e, portanto, também não se fala em prevaricação por quem soltou.
Pode-se argumentar que a nova lei de abuso de autoridade foi editada em época equivocada, pois pareceu uma resposta vingativa do Parlamento contra a operação Lava Jato. Mas, na essência técnica, trata-se de uma lei absolutamente normal, sem nenhum vício de inconstitucionalidade, s. m. j., a ser proferido pelo Colendo STF, já acionado por várias ações diretas para tal finalidade. Esta me parece a forma correta de arguir uma insatisfação das autoridades com a nova lei. O que não se pode é agir de forma infantilizada apregoando recuos em decisões judiciais com o intuito de pressionar o Parlamento e o Supremo Tribunal Federal por não concordar com a norma. Se a forma de se insurgir com uma decisão judicial para nós é o recurso, a recíproca aos agentes públicos deve ter a mesma simetria. Quando há uma insatisfação desses agentes, a plataforma adequada são os questionamentos de seus órgãos de classe e associações através de ADIN ou ADC no âmbito do STF. Sem mais.