O pacote anticrime trouxe uma significativa mudança nos crimes sujeitos ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Ele restaura a possibilidade de uma execução provisória, a partir da condenação perante o conselho de sentença quando a pena for igual ou superior a 15 anos. É lamentável que isso tenha sido previsto pelo legislador na elaboração da lei, quando justamente o Supremo Tribunal Federal havia em julgamento histórico, sepultado tal possibilidade em não permitir a execução provisória das sentenças, até que o trânsito em julgado se efetivasse, restabelecendo, assim o princípio da presunção de inocência.
O ataque a esse elevado princípio de estatura constitucional por via oblíqua nos crimes relacionados ao júri não é novidade, já que em 2017, o Ministro Luis Roberto Barroso o havia relativizado num processo no qual é relator sob o anêmico argumento de que os julgamentos feitos pelo Conselho de sentença estavam abrangidos pela soberania dos vereditos. Assim, segundo ele, tal condenação pelos pares, estava equiparada a um colegiado, igualmente ao procedimento nos Tribunais de segunda instância, portanto, vindo de órgão colegiado e soberano, não haveria qualquer prejuízo ao acusado.
Tal manifestação monocrática do Ministro encontra-se aguardando julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Com a devida vênia, o argumento não se sustenta numa análise mais criteriosa, eis que a soberania do júri é uma garantia fundamental voltada ao acusado e não pode servir de mecanismo contrário, visando prejudicá-lo, sob pena, dessas garantias inseridas na Carta Magna, se voltarem justamente a aqueles que ela visa proteger. Um contrassenso, uma aberração jurídica e uma verdadeira subversão dos direitos fundamentais.
Se não bastasse isso, o Ministro inova, realizando ponderação entre regras e princípios, algo que ele mesmo combateu em dezenas de artigos e livros que escreveu. Nos conflitos entre regras, uma exclui a outra. Entre os princípios, pondera-se, obviamente, dentro de certos critérios de interpretação e requisitos a serem respeitados.
É necessário ainda observar o efeito sistêmico dessas decisões utilitárias, pois o impacto sem a necessária previsibilidade pode ser traumático, nos levando a caminhar em terreno movediço. Um exemplo muito simples mais com enorme repercussão, é a luta de alguns parlamentares mais desavisados para que seja relativizado o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, possibilitando a execução provisória.
Inúmeros problemas e riscos podem advir de uma decisão como essa tendo reflexos sem precedentes. Um deles, seria, como bem lembrou Alexandre Morais da Rosa, numa recente palestra virtual que: “nas Auditorias onde são julgados os militares, a decisão normalmente é tomada por órgão colegiado. Nesses casos específicos, prenderemos os militares após o julgamento coletivo, usurpando a presunção de inocência?”.
No mundo do direito a regra é: quem pode mais pode também o menos. Sendo assim, como seria um Juiz, Promotor ou Delegado sendo julgado por órgão colegiado em segunda instância sobre a perda do seu cargo? Faríamos cumprir a decisão dessa execução provisória? E quanto as dívidas dos entes federativos, precatórios seriam executados após a decisão de segunda instância?
Voltando ao tema, nos parece que a corrente que alega ser inconstitucional o artigo que cuida da prisão obrigatória no Júri da lei 13.964/19 e tem fundamento na presunção de inocência, é a mais consentânea dentro do nosso sistema jurídico, e embora o parlamento tente por diversas vezes alterá-la, a mesma, se mantêm íntegra na sua inteireza quando da última decisão do Pleno do Supremo.
De toda a sorte, toda essa celeuma em relativizar garantias, principalmente, as que se referem ao Tribunal do Júri, precisam ser tomadas de forma refletida, pois caso contrário, correremos o risco de fragilizarmos todo o nosso arcabouço jurídico. O direito é uno e funciona sistematicamente, sobretudo, porque as normas nem sempre se excluem. Na maioria das vezes, elas convivem entre si, complementando-se.
Em ambientes carregados pela política, prestar atenção ao que se faz ao direito é algo imprescindível porque essas mudanças podem mais prejudicar do que trazer melhores condições de vida para a parcela mais vulnerável da população. A sanha punitivista desses incautos e moralistas de plantão poderia vir acompanhada de politicas criminais efetivas sem por em risco o que temos de mais importante: A força normativa da nossa Constituição.