Como tantas histórias de violência contra as mulheres neste Brasil a fora, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi foi apenas mais uma de tantas outras que clamaram por socorro e não foram ouvidas. Ela poderia ter sido qualquer mulher que nos dias de hoje enfrenta essa doença chamada “machismo”, mas dentre tantas que morrem dessa forma diariamente no Brasil, ela era uma mulher pouco comum e fazia parte de uma classe que recebe admiração pela posição que ocupava na sociedade. Magistrada, Juíza, uma mulher comum como vítima e incomum no título.
Na mesma semana, tendo em vista a repercussão do crime por ser a vítima quem era a imprensa passou a divulgar mais casos semelhantes de feminicídio em outras regiões do país. Isso torna evidente, que quando se trata de violência contra as mulheres, seja no formato de uma tragédia por vezes anunciada ou numa análise estatística desse patriarcado perverso que ainda insiste em permanecer entre nós, a classe social ou financeira pouco importa.
Isso foi verificado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, em recente pesquisa realizada através de seu Núcleo de Gênero-MP/SP (Raio X do feminicídio em São Paulo – é possível evitar a morte) num pequeno estudo com mais de 400 denúncias sobre a morte violenta de mulheres, o que resultou na inclusão de 364 casos. Esses dados podem de alguma forma ajudar a entender esse processo progressivo de mortes de mulheres apesar da legislação principal (Lei 11.340/06) e especial (Lei 8072/90) na visão de alguns, ser considerada a 3ª. melhor no mundo, o que significa dizer, que tal comportamento não deixa de existir porque há uma previsão de penas altas no cometimento desses crimes, principalmente nos casos de homicídios consumados.
Em regra, os aspectos analisados nessa pesquisa foram: a tipificação do feminicídio (se era adotada ou não nas acusações formuladas pelo Ministério Público), dia da semana e horário do crime, “armas do crime”, espécie de vínculo com o agente; motivo determinante do crime na relação afetiva; existência de outras vítimas, número de golpes; a existência de medidas protetivas de urgência. Tudo isso abrangendo um total de 124 comarcas no Estado de São Paulo.
Verificou-se que 68% dos crimes tentados ou consumados são cometidos durante a semana entre segunda e sextas feira. Aos Sábados 15% e domingos 17%. Outro dado observado no levantamento foi o horário em que os ataques aconteciam. Constatou-se que grande parte dos crimes acontece durante o dia e no início da noite: durante a manhã (20%), durante a tarde (19%), do início da noite até meia noite (35%) e apenas 21% ocorrem durante a madrugada.
A pesquisa apurou da mesma forma, o local em que as vítimas sofriam os ataques sendo 66% apurados que a mulher sofrera a tentativa ou a conduta fatal em casa. Outro dado relevante foi a identificação de feminicídios praticados em locais normalmente frequentados pela mulher, como seu caminho para casa ou para o trabalho, o que resultou no total de 8% dos crimes praticados.
Ainda, conforme a pesquisa, o resultado morte ocorreu em 34% dos processos de feminicídio analisados contra 66% de crimes tentados. De uma forma aproximada, para cada três mulheres atacadas por um agressor com intenção de matar, uma morreu. Houve também a análise das armas utilizadas nesses delitos. Trata-se do instrumento que deu causa ou era apto a causar a morte da vítima (“arma principal”). Armas brancas 58% (faca, foice ou canivete) armas de fogo 17% uso das mãos 10%, outros (4%).
Enfim, diversos outros dados foram apurados, tais como a intensidade dos golpes, perfil da vítima, motivos do crime e em todos eles, a análise foi sempre muito pontual e não difere de outras pesquisas realizadas para este segmento. Em resumo, as Instituições conhecem exatamente que tipo de delito está se falando, o perfil da vítima e de seu agressor. Não bastasse isso, temos uma legislação que vem sendo aperfeiçoada desde o ano de 2006, mas nada disso tem surtido efeito e os números a cada dia, só aumentam em todas as classes sociais.
A pergunta que não cala entre nós é qual a política pública desenvolvida ao longo desses 14 anos para que fosse coibida a violência contra a mulher? Quantas Delegacias especializadas, abrigos em condições, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, conhecemos na nossa cidade ou no Brasil para amparar essas vítimas com projetos educativos para esses agressores violentos, além da mera prisão e condenação?
Ninguém tem dúvidas da complexidade do tema e de que há necessidade de focar o problema em outras variáveis, porque podemos até prender os matadores de mulheres por um longo tempo, mas em relação àqueles que ameaçam e os agressores? Esses continuarão fazendo novas vítimas e reforçando a estrutura de violência cotidiana em novos relacionamentos abusivos.
A ilusória ideia de que apenas o Direito Penal resolva essa questão ou que a violência contra as mulheres seja especificamente um problema de cultura machista construída ao longo do tempo não tem resolvido, ao contrário, os índices nos mostram que estamos longe de alcançar algum resultado positivo. O fato é que uma lei pode até tentar reduzir danos, mas não muda a cultura, muito menos a estrutura de uma sociedade patriarcal que vê na mulher ainda um objeto de posse e desejo.
Como sempre acontece, em casos rumorosos como esses, grande parcela de Instituições que se mostraram omissas ao longo de todos os anos, divulgam notas públicas de indignação ou repúdio, se aproveitando desses momentos de dor para mostrarem que de alguma forma estão fazendo algo, o que não é verdade. Nada de efetivo está sendo feito. São instituições omissas e oportunistas tentando fugir de suas atribuições e responsabilidades. Hipócritas de plantão.
Essas narrativas maniqueístas divulgadas nas redes sociais não se sustentam a um olhar mais crítico, pois desconectadas da realidade e sucumbem a qualquer tentativa de observar o problema de forma binária, apenas pela questão criminal/cultural. Se é verdade que o machismo estrutural em nossa sociedade, fruto de um patriarcado dominante, faz inúmeras vítimas todos os dias conforme todas as pesquisas demonstram, não é menos verdade, que a ilusão de leis mais duras elaboradas no intervalo de quase quinze anos, não farão essas mazelas sumirem do mapa.
O que se pode concluir é que cada vez que abordamos essas tragédias, independente das classes que atinjam ou os lugares onde ocorram, devem ser encaradas como feridas abertas de perversões de um patriarcado que precisa ser extinto. Como faremos isso? Não temos essa resposta, o que sabemos é que o processo é longo, pois ele passa também necessariamente por nós homens, reconhecendo que temos que travar uma luta diária contra essa doença chamada machismo que absorvermos desde a infância, sobretudo para àqueles que foram educados de forma muito sútil a utilizar a proteção da mulher como desculpa para sua dominação. A educação masculina no lar diz muito sobre isso e está presente não só no seio de nossas famílias, mas no ambiente em que estamos.
É preciso respeitar os espaços feministas com suas abordagens e queixas sempre muito justificáveis. Devemos ouvir mais. Devemos reconhecer que há mazelas que não nos abandonam da noite para o dia. Reconhecer isso, talvez seja o primeiro passo de uma centena de outros que devemos dar na direção desse entendimento. Talvez, e só talvez, se fizermos algo, sem máscaras e subterfúgios, buscando uma rede transdisciplinar de auxílio para as partes envolvidas nesses conflitos tão complexos, muito deles com sua origem dentro do lar, através de uma verdadeira comunhão de esforços de transformação pessoal, cultural, terapêutica, com apoio da sociedade civil e de órgãos públicos, possamos ao menos diminuir esse índice assombroso de violência contra a mulher. Sem hipocrisia, é possível ter esperança.
Referências Bibliográficas
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.PDF